Por Márcia Uggeri Maraschin – Advogada da União, integrante do Núcleo Especializado em Arbitragem, Mestre em Direito Internacional e Relações Internacionais pela Universidad Complutense de Madrid – Espanha, Especialista em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal pela Escola Nacional de Administração Fazendária – ESAF, Certificada no Curso em Theory and Tools of the Harvard Negotiation Project.

 

Nos últimos anos a opção dos entes públicos em dirimir seus conflitos por meio do juízo arbitral tem aumentado consideravelmente. Tal realidade faz-se demonstrada em números, uma vez que, só em 2019, 16,66% dos procedimentos de arbitragem instauradas no Brasil contavam com um ente da Administração Pública em um dos seus polos.[1]

À luz deste contexto, a Advocacia-Geral da União publicou a Portaria Normativa AGU nº 42, de 7 de março de 2022, estabelecendo critérios para a escolha de árbitros em procedimentos arbitrais em que a União seja parte. Trata-se aqui de um normativo inovador, que, com base nos normativos vigentes e na prática arbitral, detalha os critérios a serem valorados pela União no processo de formação de um tribunal arbitral.

Sabe-se que o processo arbitral se consubstancia de uma série de atos coordenados e complexos, tendo como seu ápice a sentença prolatada pelo juízo arbitral. Logo, o tribunal arbitral deve gozar da total confiança das partes e possuir expertise necessária para exercitar, motivadamente, o poder/dever de dirimir relação conflituosa, mediante sentença arbitral, decorrente de sua função jurisdicional.

O processo de escolha de árbitros é apontado pela doutrina como a principal diferença entre a arbitragem e a justiça estatal. [2]  Dessa maneira, em vez de submeterem ao Estado a função de dirimir suas controvérsias, no processo arbitral, as partes escolhem o rito e os árbitros a quem confiarão a tarefa de julgar sua disputa. Em tal cenário, nada importa mais do que escolher um tribunal arbitral eficiente e autônomo.

Nesta linha, em defesa da segurança jurídica e da perenidade da prestação jurisdicional decorrente das decisões arbitrais, o art. 18 da Lei de Arbitragem estabelece que o árbitro é juiz de fato e de direito. E mais, prevê este dispositivo, ainda, que a sentença que proferida pelo juízo arbitral não fica sujeita a recurso ou homologação do Poder Judiciário. Resta evidente, assim, a importância da escolha dos árbitros em uma arbitragem.

A Administração Pública Federal conta com normativos esparsos tratando da matéria em pauta. A Lei nº 9.307, de 1996, dedicou o seu Capítulo III a estabelecer regras sobre a nomeação de árbitros, as quais são observadas pelos demais normativos legais em âmbito federal e estadual. Contudo, a Lei de Arbitragem não traz um considerável nível de detalhamento sobre os requisitos a serem observados pelas partes na escolha do tribunal arbitral.

Nota-se que a Lei de Arbitragem, em seu art. 13, faculta às partes escolher como árbitro qualquer pessoa capaz que detenha a sua confiança. Com efeito, segundo este normativo, os árbitros poderão ser quaisquer pessoas maiores de idade, no domínio de suas faculdades mentais e que apresentem, em seus atributos, como maior diferencial, a confiança das partes.

Ademais, a Lei de Arbitragem impõe aos árbitros a obrigação de imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição,[3] ao tempo que veda a atuação, como árbitro, aquele que apresente qualquer situação de impedimento ou suspeição já prevista no Código de Processo Civil.[4]

O Decreto nº 10.025, de 20 de setembro de 2019, que dispõe sobre a arbitragem para dirimir litígios que envolvam a Administração Pública Federal na área de infraestrutura, trata, em seu art. 12, do procedimento de escolha de árbitros, estabelecendo requisitos para tanto, vale dizer: estar o árbitro no gozo de plena capacidade civil, deter o árbitro conhecimento compatível com a natureza do litígio, como também, não ter, com as partes ou com o litígio que lhe for submetido, relações que caracterizem as hipóteses de impedimento ou suspeição de juízes, conforme o disposto no Código de Processo Civil, ou outras situações de conflito de interesses prevista em lei ou reconhecidas em diretrizes internacionalmente aceitas ou nas regras da instituição arbitral escolhida.[5]

No âmbito da Administração Pública Federal Direta, a Portaria AGU nº 320, de 13 de junho de 2019, que instituiu o Núcleo Especializado em Arbitragem da Advocacia-Geral da União, estabelece, na mesma linha e regras do Decreto nº 10.025, de 2019, critérios mínimos para escolha de árbitros. [6]

Somando-se a este arcabouço normativo, contamos com a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – que estabelece, em seu artigo 154, que o processo de escolha dos árbitros deverá observar critérios isonômicos, técnicos e transparentes.

Em paralelo ao regramento pátrio, inserem-se neste contexto os Códigos de Ética e as diretrizes  internacionalmente aceitas – adotadas por instituições arbitrais como a International Bar Association – ademais das regras próprias da instituição arbitral escolhida pelas partes.

Pois bem. Pautado no microssistema acima descrito, temos a recente edição da Portaria Normativa AGU nº 42, de 2022, que vem definir, com a clareza e o detalhamento necessários, os critérios a serem valorados pela União quando da escolha dos árbitros a compor um tribunal arbitral.

O Art. 2º da Portaria em tela, em seus incisos I a IV, revisita as regras vinculantes destinadas a escolha dos árbitros pela Administração Federal, estabelecendo requisitos para indicação de árbitros, como sejam:

I – estar o árbitro no gozo de sua plena capacidade civil;

II – deter o árbitro confiança das partes;

III – deter o árbitro conhecimento compatível com a natureza do contrato e do litígio;

IV – não ter o árbitro, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, as relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil; e

V – não incidir o árbitro em situações de conflito de interesses reconhecidas em diretrizes internacionalmente aceitas ou nas regras da instituição arbitral escolhida.

Feito isto, a fim de atender o disposto no art. 154 da Lei nº14.133, de 2021,[7] a Portaria em comento, no § 1º do seu art. 2º, estabelece que a União, ao averiguar se o árbitro tem conhecimento compatível com a natureza do contrato e do litígio[8],  deverá considerar com relação aos árbitros a serem indicados:

  1. formação profissional almejada – se o caso concreto demanda profissional da área do direito, da engenharia, de contabilidade etc.;
  2. área de especialidade almejada – direito processual, arbitragem, direito público, direito societário, direito estrangeiro, infraestrutura, energia etc.; e
  3. nacionalidade almejada, considerando, entre outros fatores culturais, a língua aplicável à arbitragem, quando for o caso.

Note-se que a Portaria Normativa AGU nº 42, de 2022, não estabelece ordem de prioridade entre os critérios listados para definir o perfil do árbitro desejado, sendo que, no nosso entender, eventual prioridade entre esses critérios deve ser avaliada à luz do caso concreto.

Somando-se aos critérios previstos no caput do art. 2º, a mesma Portaria, no § 2º do seu art. 2º, dispôs alguns fatores adicionais que podem ser levados em consideração na escolha e indicação de um árbitro, como sejam:

  1. disponibilidade do profissional do árbitro a ser indicado, o que se justifica pela desejável celeridade do processo arbitral;
  2. experiências pretéritas do árbitro a ser indicado, considerando para tanto sua atuação profissional na condição de árbitro, seja no que se refere à condução do procedimento, seja no que se refere à qualidade das sentenças proferidas;
  3. número de vezes que o profissional já foi indicado como árbitro pela União, sendo desejável a alternância de profissionais; e
  4. perfil do profissional indicado como árbitro pela parte contrária.

Por fim, e não menos importante, cumpre-nos registrar que a AGU, com vistas a resguardar a independência e autonomia do tribunal arbitral que venha a dirimir as controvérsias em que a União seja parte, teve o cuidado de estabelecer no inciso VI do art. 2º da Portaria nº 42, de 2022, que o árbitro indicado pelo Poder Público não pode ser ocupante de cargo das carreiras jurídicas da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria-Geral Federal e da Procuradoria-Geral do Banco Central, nos termos da Orientação Normativa AGU nº 57, de 29 de agosto de 2019.

Há que se enfatizar, entretanto, que o rol de critérios acima apresentado visa a subsidiar a União na escolha de árbitros, pontuando-se, porém, não ser um elenco exaustivo e estático, devendo a Administração, em prol da eficiência que norteia sua atuação, pautar-se nas peculiaridades do caso concreto para a aplicação de tais critérios.

Resta ressaltar, por fim, que o nível de detalhamento da matéria disciplinada pela Portaria nº 42, de 2022, faz-se de grande importância, uma vez que visa a garantir a expertise, a independência e a imparcialidade do juízo arbitral, elementos estes imprescindíveis para um julgamento técnico e justo, decorrente de uma decisão arbitral que detém eficácia vinculante às partes.

 

[1] LEMES, Selma. Pesquisa arbitragem em números.

[2] FOUCHARD, Philippe. Le statut de l’arbitre dans la jurisprudence française. Revue de L’arbitrage, 1996: 325/72.

[3] Art. 13, § 6º, da Lei de Arbitragem.

[4] Art. 14 da Lei de Arbitragem.

[5] Art. 12 do Decreto nº 10.025, de 2019.

[6]  Art. 2º, parágrafo 1º, da Portaria nº AGU nº 320, de 2019.

[7] Art. 154. O processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.

[8] Art. 2º, caput, inciso III, da Portaria nº Normativa AGU nº 42, de 2022.